TESOURINHA... NASCEU A GRANDE PAIXÃO!

03/05/2014 01:11

Em 1957, mudamos de Ribeirão Preto para Uberaba – MG, minha mãe resolveu estudar Pedagogia e lá havia a respectiva faculdade. Já gostava demais de todo tipo de passarinho, mas os meus eram somente coleirinhas e canários da terra. Volta e meia, ficava intrigado porque havia o Dr. Rocha que morava perto de casa e andava com um pássaro esquisito com a gaiola na palma da mão, subindo e descendo a Rua Silva Jardim, e ele cantava muito bonito e alto.

 

Um dia, perguntei:

– Dr. esse bicho é muito caro?

Respondeu: Ah, menino isso é um bicudo e não é pássaro pro’cê, é muito caro e difícil, mexa com canário!!!

 

É fiquei na minha e pensando: “realmente não tenho um vintém no bolso como querer um bicudo, isso é só pra Dr.”. Daí, comecei por curiosidade a perguntar para alguns passarinheiros sobre o bicudo. Cada um ressaltava mais ainda: “é bicho caro, só quem tem muito dinheiro pode ter um, se tiver com intenção de ter um tire da tua cabeça”. Realmente, tirei da cabeça, mas não do coração.

 

Passado um tempo, já estava eu com 14 anos em 1958, quando sentado em carteira na sala de aula no Colégio Diocesano em Uberaba – MG, escutei um “buchicho” atrás de mim falando em “bicudo”. Perguntei:

– “tão falando daquele passarinho preto do bico branco”?

– “É sim, dizia outro colega: Paulinho tem um que é fera, né Paulo”?

– “É meu bicudo é muito bom, domingo tem um torneio aqui e ele vai ganhar”!!!

– Quer ir lá em casa para ver o bicho?

Fiquei meio estupefato e admirado. Bicudo para mim era que nem um caviar “só vi, só ouvi e não é prá ti, já dizia o Dr. Rocha”.

 

Então, naquele momento, para minha surpresa o Paulo Borges meu colega de classe – embora ele já tivesse 19 anos – vejam só era uma pessoa que tinha “bicudo” e era muito simpático e afável. Até que enfim poderia sentir um bicudo de perto. No mesmo dia, fui até a casa dele para ver seus bicudos. Nascia uma grande amizade, embora ele tenha me tomado o Carequinha, um belo canário que tinha, em troca de um “cheba”. Tudo bem, ele era mais velho, tive que pagar esse “mico”, rssss. Muito tempo depois teve acerto.

 

Havia lá uns cinco bicudos, entre eles, um tal TESOURINHA, o deslumbramento foi total, perdi até a fala diante de um bicudo daquele naipe. Em seguida ele me narrou a estória dele:

 

– “O João Botica, o havia pegado na Água Limpa, um povoado perto da cidade – hoje é zona urbana e nome de Avenida em Uberaba – lá havia um brejo com bicudos que cantavam o Suim-Suim. Passaram seis anos na casa dele, que tinha outro bicudo o FUZIL do qual o TESOURINHA tinha respeito. Lá ele não tinha fogo, respeitando o bicudo véio. Cantava muito, mas piava mole e não abria”.

 

Paulo Borges, com ajuda do amigo Onofre, percebendo que o bicho era diferenciado, o pegou. Continuando a descrição:

 

– “assim que foi chegando em casa, ele sem sentir mais o canto do FUZIL, já começou a trincar de fogo. Subindo a escada passou a voar aprumado. Em dez minutos, começou a dar “quem-quem” e ficar ereto em posição de atenção. A flor estava desabrochando!!!!” Seu canto, maravilhoso, o que havia de melhor à época denominado o “Suim-Suim”. Além de cantar bonito, ele era repetidor e dividia o canto no “cocotil”. Uma beleza total. Seu nome TESOURINHA foi posto porque estragava ponta do rabo de um lado, parecendo que havia sido cortado por uma tesoura. Além disso, não entrava na banheira.

 

Pouquíssimo tempo depois de adquirido, seria o Torneio de Uberaba onde afluíam criadores de Ribeirão Preto, Franca e Barretos, em especial. Paulo continuou me contando:

 

– “resolveu levá-lo depois de ter se apresentado bem num pequeno treino que havia feito durante a semana. Ganhou o torneio, para espanto geral de todos. O João Botica quase morre do coração, seu FUZIL não cantava na roda.” Começou aí a carreira incrível do campeão!

 
Voltando então, ao episódio do meu primeiro contato com o TESOURINHA na casa de Paulo, dali para frente passei a acompanhar e a compartilhar as performances do campeão. Passei a ajudar levar os bichos ao brejo de uma forma bem interessante: para levar quatro bicudos utilizávamos dois bambus compridos escorados nos ombros com um deles em cada ponta. Era até engraçado, mas, ajudava a não irritá-los demais. Logicamente toda atenção era dedicada ao TESOURINHA.

 

Na semana seguinte para minha alegria, seria o Torneio de Uberaba, nunca tinha visto um. Fui para casa do Paulo de madrugada, naquela época os torneios se iniciavam às seis horas da manhã. Dezenas de bicudos vindos de todos os cantos. Para mim uma loucura total, fiquei maravilhado. Mas já percebi o “frisson” dos criadores: Cadê o TESOURINHA? Nossa, ele está aí...; Estamos perdidos, ele está aí...”. E assim por diante. Neste dia conheci o saudoso amigo o simpaticíssimo Roberto Benedetti, de Ribeirão Preto, ele era o líder e o organizador dos torneios. Queria ver o TESOURINHA antes de iniciar a roda, Paulo o colocou em cima do carro, o bicho danou a repetir e voar de um lado para o outro, sensacional. 
Daí um pouco, no torneio, um verdadeiro show... TESOURINHA não parava de cantar, as vezes no gogó, daí a pouco esguelhado e assim em diante. A marcação da final era por meia hora, encheu a ficha e não dava para marcar mais. Realmente demais. Uma festa danada! Em comemoração, se serviam chopps, pasteizinhos e salgadinhos no final, era costume... Desse dia em diante nasceu minha grande paixão por bicudos. Passei a me sentir um pouco o dono do TESOURINHA por causa da amizade de irmãos que fiz com o Paulo.

 

E assim foi... Naquele ano TESOURINHA ganhou todos os torneios. Franca, Ribeirão, Uberaba, só em Barretos que foi segundo porque ficou um tanto espantado com as árvores em volta da roda. Lembrar que as viagens naquele tempo eram complicadíssimas, quando não era poeira demais, quando chovia vinham os atoleiros, sem dizer dos autos que eram verdadeiras carroças. Tinha que levar os bicudos no colo, os solavancos eram muitos. Para Franca de trem, Maria Fumaça chacoalhando de um lado para o outro e o bicudo na mão. Sofrimento misturado com diversão... rsss.

 

No ano 60 as coisas complicaram, o Paulo mudou-se para Ouro Preto – MG, para estudar e eu sofri um grave acidente no “Pasto do Pereira”, perdi uma vista e só não morri porque não era a hora e, também, pelas ajudas de todos os lados, da família, do saudoso Dr. Guerra, espiritual de Chico Xavier e, da necessária interveniência Divina. A tristeza era grande, sem o amigo Paulo e sem ver o TESOURINHA que ficou algum tempo amoitado em casa.

 

Paulo, para Ouro Preto e eu com a minha família de volta para Ribeirão Preto. Notícias quase nenhuma, naquele tempo não havia a facilidade de hoje para comunicação. Só via carta, nada de contato. Até que através de bicudeiros de Ribeirão que já havia conhecido, soube que o TESOURINHA estava em Goiânia com um senhor por nome de Fião. Estive em seguida no torneio de Ribeirão, onde encontrei o Roberto Potoca, falando pelos cotovelos, dizendo que o TESOURINHA tinha virado vaca e que era um bicudo corrido.

 

Estranhei demais, e corri para perguntar ao pessoal de Uberaba, o que era aquilo. Deram-me uma explicação meio truncada, mais, tinha algum sentido: “O Fião havia comprado o campeão e um tal de LOUQUINHO, de Brasília, que estava no auge e o TESOURINHA não havia se adaptado com a nova mexida e estranhado muito o local e assim não estava aprontando bem para roda. Fiquei deveras chateado com a notícia “não é possível, isso é demais, balbuciava”.

 

Soube que o Paulo Borges, também, ficou revoltado com a informação. Os criadores de Uberaba, mais amigos, também. Isso tudo, fez com que estimado Geraldo Fidélis, dono do Hotel Regina, fizesse um esforço muito grande para trazer TESOURINHA de volta para Uberaba. Ainda bem, voltou e chegou com tudo logo retomando a forma e passando agora a ganhar torneios novamente.

 

O tempo passou, mudei para Santo André – SP em 63. Passei a ter muitas dificuldades para ir a torneios, porque tinha que vir de ônibus para Ribeirão, para depois, com os companheiros daqui, viajar para os locais dos eventos. O companheiro que mais me deu carona foi o amigão já falecido Luís Andrade. No entanto, ficava sempre interessado e acompanhando o desempenho do TESOURINHA, sempre em alto nível.

 

Foi assim até que num torneio em Barretos, ano de 66, Geraldo me chama para ver o TESOURINHA lá no quarto do hotel. Quando entrei tive um susto, o bicho estava “grosso” e amuado. Hoje sei que pela aparência era um alto grau de coccidiose, infelizmente. Ele me disse: “quer ficar com ele”. Chorei de tanta emoção, mas me contive. Fui para o meu quarto e não saí mais naquele dia, amargurado que estava. Ninguém sabia lidar com essa doença naquele tempo. Pressenti que ele iria a óbito de forma iminente. Dito e feito dali alguns dias o campeoníssimo morreu.

 

O canto Suim-suim, também, extinto. Havia dezenas de bicudos com este canto, mas ninguém se preocupou em conservar. Os bicudos silvestres morreram. Não se tirou filhotes. Uma grande perda em todos os sentidos. A verdade é que não se vislumbrava nenhuma ação que se poderia fazer para preservar. Reproduzir não dava certo, era o sofisma que todos acreditavam. O pior é que a mesma situação ocorria em Franca, Barretos, e Ribeirão, os berços, para nós, dos bons bicudos de fibra e de canto. Estávamos naquela época num grande dilema. O que faríamos? Não se sabia direito qual a direção tomar.

 

Soube, então que Paulo Borges mudou-se para Santo André logo depois que de lá saí. Uma pena! E assim foi. De novo para Ribeirão Preto, em 68, participei em alguns torneios e dei uma parada de mexer com bicudos. Mudei para Brasília em 73. O tempo se passou quando já na década de 80 estava num supermercado e avistei o Paulo Borges por lá fazendo compras. Assustado, perguntei:

– “o que estás fazendo aqui??

Respondeu:

“Estou morando em Brasília” !!!

 

Ora que bom, vamos retomar nosso convívio! E assim foi. Ele com muitos bicudos e eu, também. Depois me arrumou o bicudo PAIAKAN para tirar filhotes, resgatando a questão do canário Carequinha, daí esqueci, completamente, a “manta” que havia levado, rsss.

 

Numa visita em sua casa, lá no Lago Sul e conversando sobre o TESOURINHA, comentamos: “Paulo, lembra que na época do torneio de 58, lá em Uberaba, tocava na Rádio o canto dele e que o locutor falava”: “povo de Uberaba, domingo haverá o Torneio de Canto de bicudos na Exposição, todos estão convidados a entrada é de graça”. Paulo disse: é verdade, essa gravação está com o Geraldo e guardada em seu cofre. Na mesma hora ligamos e houve a confirmação a fita existia!

 

Ficamos felizes, sem muito esforço o amigo Geraldo nos disponibilizou a gravação. Só que quando vimos, a fita estava toda se desmanchando. Sentimos que seria difícil recuperar o som. Pensamos, pensamos, até que surgiu a ideia de ir a Radio Nacional de Brasília. Fomos lá numa noite e por muito tempo, com a ajuda de um técnico de muito boa vontade conseguimos ir recompondo o canto emendando pedaços da fita com o módulo de entrada e o de repetição. Depois disso, com alguma dificuldade, mas bem orientados, fomos aos poucos conseguindo editar e montar o canto original, tal qual ele cantava para, finalmente, obter as frases do canto Suim-Suim Uberaba do TESOURINHA, originário da Água Limpa. Uma vitória que muito comemoramos, foi uma grande festa regada até a champanhe.

 

Para completar nosso trabalho de resgate, com o auxílio do amigo João Salles oferecemos e entregamos em meio magnético ao então prefeito de Uberaba a gravação do canto do TESOURINHA que está guardada no acervo histórico da cidade. Recentemente disponibilizamos também no “You Tube”, para que os interessados possam ouvir e cultivar o canto do grande campeão. Ele se foi, não deixou filhos, mas deixou uma grande amizade, muitas saudades e por nossa sorte seu melodioso canto preservado.

 

https://www.youtube.com/watch?v=mrjTHEAhJlc&list=UUIw94HBD5Gkbxl1_-izJN-Q

 

Aloísio Pacini Tostes

Bonfim Paulista – Ribeirão Preto SP

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